Lei Rouanet e a HIPOCRISIA

O investidor multibilionário norte-americano Ray Dalio disse que o mundo é movido pela inveja. Ele disse inveja, não ganância. Mas surge a pergunta: o que vem antes?
Temos ganância –de gana—por sermos invejosos ou assim somos porque temos ganância? Digressão à parte, o senhor Ray Dalio tem razão. Pelo menos aparente. De qualquer forma, fica difícil prová-lo errado neste mundo de capitalismo ultraliberal no qual vivemos. A competição não é mais por comida nem por sobrevivência, pelo menos não no
primeiro mundo, e para pessoas como nós, aqui do sul-global* que temos condições de ambicionar, não apenas sobreviver. Para esse ser humano, a competição é por bens. Não à toa, o substantivo foi reabilitado: não é mais feio ter ambição. Os psicólogos, psiquiatras e terapeutas em geral concordam. Se é que não concordam em uníssono.

 
Mas se é assim, é portanto algo irremediável –com o que tenho que conviver. O mesmo não vale, em relação a mim, para a hipocrisia. E esta é bem mais aceita que a inveja. O invejoso esconde o que sente. O hipócrita muitas vezes não. Este covarde, desde sempre me incomodou e incomoda muito (Freud explica?). Os exemplos são infinitos, mas como o título do artigo diz, estou aqui para tratar do que dizem alguns sobre a Lei Rouanet. Por esta lei o artista não recebe dinheiro do Estado, mas sim de empresas que podem deduzir dos impostos que pagam à coisa pública. Essa dedução de impostos, no entanto, só pode ser feita a partir da anuência… pública. Não é direto dos cofres estatais. E é um processo burocrático trabalhoso você conseguir ser contemplado pela lei. Aí, depois de autorizado, o artista pode ir, de empresa em empresa, pedir dinheiro para a sua obra. Cantores sertanejos geralmente são contratados por prefeituras. Dinheiro público direto. Muitas dessas cidades empenham quantias incompatíveis com o orçamento do município –pois neste faltará verbas para escolas, hospitais, etc.—sem qualquer supervisão.

Isso acontece em centenas de municípios neste país enorme. Tudo sem escrutínio. Imagine que uma banda vá tocar numa cidade do interior. O prefeito paga ao cantor e sua turma 200 mil reais. Esse prefeito fica com uma metade (ele e os seus) e os ‘artistas’ e produtores com a outra metade. Não há fiscalização alguma e este tipo de situação, esteja certo, ocorre muito.

Portanto, quando se fala em “mamata” para gente do meio artístico… Quando se diz que a Lei Rouanet provê “mamata” para artista, eu logo penso na palavra hipocrisia. Seguida de outra: ignorância. As duas podem ou não estar no mesmo julgamento, só que, enquanto ignorância é perdoável, hipocrisia não. Não no meu cânone. Ps: Nos Estados Unidos existem leis –as regras dependem do estado da federação daquele país– equivalentes a esta lei acima citada. E existe também o National Endowment for the Arts, uma agência federal deles de fomento à cultura. Ou seja, fomentar cultura não é “coisa de comunista”. (Em geral, quem fala isso não merece seu tempo explicando. Mas sejamos generosos e iluminemos os ignorantes.) *Sul global é um termo utilizado em estudos pós-coloniais e transnacionais que pode referir-se tanto ao terceiro mundo como ao conjunto de países em desenvolvimento. Também pode incluir as regiões mais pobres (em geral ao sul) de países ricos (do norte).
São Paulo, 06 de março de 23
Frederico Ribeiro

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